Avanços e Retrocessos
Vivemos um momento delicado, no Brasil, com relação à garantia de direitos, sobretudo no que diz respeito aos direitos das crianças e adolescentes. Após alcançarmos avanços significativos, tanto em nível de atuação da sociedade civil, quanto nas ações de governos, nos vemos enredados num descaso muito grande nesse sentido.
Ao longo da história do nosso país, crianças e adolescentes sempre foram, de alguma forma negligenciados ou tratados como alguém que não tinha voz nem vez, visto que só pessoas adultas decidiam sobre tudo. As vozes das meninas e meninos, inúmeras vezes clamando por justiça, para que alguém os enxergassem, não foram ouvidas. Essa postura ficou evidente sobretudo no período da ditadura militar, onde nem sequer as pessoas adultas foram ouvidas pelos governantes. Crianças e adolescentes não escaparam a essa perseguição, tanto na legislação, onde o que importava era o “controle social” e não a garantia de direitos, como também na prática diária, onde crianças e adolescentes eram retirados de suas famílias e colocados em grandes instituições, como se pobreza fosse sinônimo de marginalidade.
Nas ruas não era diferente, sendo que, em Caxias do Sul, ao iniciarmos um acompanhamento com adolescentes com problemas com a justiça, nos deparamos com um auto de apreensão de um menino de doze anos em que constava de próprio punho do policial: “preso por suspeita de intenção de roubo”. O menino estava olhando para uma vitrine.
É sabido, também, que durante séculos quem se ocupou do cuidado com a infância no Brasil foram organizações da sociedade civil, sobretudo ligadas a congregações religiosas. Com seus equívocos e, embora por vezes sem uma reflexão mais crítica em relação aos reais motivos da exclusão social, foram amenizando o sofrimento dessa parcela da população invisível pelos governantes, a não ser pelos órgãos de repressão.
Com o fim da ditadura militar e a aprovação da Constituição Federal de 1988, conquistou-se um avanço importante na legislação. A partir disso, foi possível, com uma grande mobilização nacional, elaborar o Estatuto da Criança e do Adolescente, lei 8.069/90. Inúmeras crianças e adolescentes, de todos os estados brasileiros, participaram de encontros em que se discutiam questões importantes a serem contempladas na lei. Com a participação de educadores, magistrados, advogados, religiosos e religiosas e uma infinidade de lideranças, chegou-se ao texto dessa lei, fundamental para a garantia de direitos.
Houve muitas críticas ao Estatuto, e até hoje persistem algumas, sobretudo a de que o Estatuto só traz direitos e não os deveres. Ocorre que na história sempre foi exigido o cumprimento dos deveres e nunca se falou em direitos das meninas e meninos. Além do mais, o direito de um é sempre o direito do outro. Portanto, ao exigir o meu direito, preciso saber respeitar o direito da outra pessoa. O certo é que a partir dessa nova lei, avançamos muito, no sentido de garantir vida digna, principalmente a partir da criação dos Conselhos de Direitos e Conselhos Tutelares e no estabelecimento de políticas públicas voltadas ao cuidado desse público.
Entretanto estamos vivendo um momento de muita tensão, devido aos rumos da política nacional. Dá a impressão de que a violência foi de alguma forma “autorizada” pela autoridade máxima do nosso país. E sempre que se vive um momento de sofrimento, as crianças e adolescentes são as mais atingidas, em razão da sua vulnerabilidade e sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
Encerro apontando três grandes desafios que nunca podemos perder de vista: o primeiro é a organização, mobilização e luta por conquistas de direitos na legislação; em segundo lugar, vem a cobrança aos órgãos responsáveis pela implementação da lei e, junto com isso, nosso trabalho para mostrar, na prática, que determinadas leis não só funcionam, como fazem bem para todos os cidadãos e cidadãs; Em terceiro lugar, precisamos estar vigilantes e mobilizados, porque a todo momento existem pessoas e grupos interessados em retroceder no aspecto legal, sobretudo se a lei mexe em privilégios de alguns.
Elói Gallon é professor aposentado, coordenador da Pastoral do Menor da Diocese de Caxias do Sul.